Durante 3 dias, Sandra percorreu a solo as antigas linhas ferroviárias do Dão e do Vale do Vouga (agora reconvertidas em ecopista) terminando na Ria de Aveiro. Descreve-nos a experiência, dando destaque ao lado espiritual e de reflexão que este tipo de viagens proporciona a quem viaja de bicicleta em modo slow travel.
Viseu e Vouzela foram os locais escolhidos para pernoitar.
Texto e fotos: Sandra Vindeirinho
Edição: P. Guerra dos Santos
Foz do Rio Vouga. Estuário da Ria de Aveiro.
"A bicicleta pode ensinar-nos muito sobre a vida espiritual", escreve José Tolentino Mendonça no seu livro O Pequeno Caminho das Grandes Perguntas. Os olhos sorveram a frase, o cérebro meditou sobre ela e daí a pouco, o corpo já gritava pela próxima aventura.
Nota prévia!
É preciso ter cuidado. A primeira vez que se percorre uma ecopista em silêncio quer-se repetir. Se a mesma for abençoada por bosques, rios e campos sem fim, estamos perdidos. Há o sério risco de nos tornarmos egoístas. De querermos ir sozinhos, expostos ao vento e ao tempo, sem o burburinho de outros viajantes.
1º Dia: Ovos cozidos e pão de alfarroba. Santa Comba-Dão a Viseu, 49 quilómetros.
A primeira visão da Ecopista do Dão não é bonita. A estação de Santa Comba-Dão assemelha-se a um cenário pós-guerra. A linha da Beira Alta está em obras há mais de um ano, com o carril arrancado do chão. Pelo que vir de comboio de Coimbra até ao início da ecopista, está fora de questão.
Com a boleia certa, o caminho inicia-se por entre o pó das obras, para logo dar lugar ao bosque encantado. Há muitas árvores que servem de sombra, campos cultivados, quilómetros sem ver ninguém.
Ecopista do Dão.
"A sombra dos carvalhos pede uma paragem para o almoço, caso os alforges venham prevenidos, o que é aconselhável."
A antiga Linha Ferroviária do Dão ligava Santa Comba-Dão a Viseu, num total de 49 quilómetros. Desactivada em 1990, em 2011 foi convertida em ecopista naquele que é um bom exemplo da união de esforços para um bem comum entre três municípios: Santa Comba-Dão, Tondela e Viseu. O piso é firme, asfaltado, e segue pelas curvas dos rios Dão e Paiva subindo ligeiramente até Viseu. Pelo caminho há praias fluviais para refrescar o corpo.
A sombra dos carvalhos pede uma paragem para o almoço, caso os alforges venham prevenidos, o que é aconselhável. Num banco com vista para a ecopista, improvisa-se a mesa. Ovos cozidos, pão de alfarroba, maçãs e barras energéticas de chocolate. Quase tudo o que é preciso para abençoar o caminho, até se encontrar a primeira antiga estação de comboios. Existem várias, convertidas em bares e restaurantes. Aqui, a cerveja preta brinda-se com vista para a ecopista, já com Viseu no pensamento, na Taberna da D.Maria à espera da tiborna de bacalhau para terminar o primeiro dia de aventuras.
2º Dia: Vouga que não é (ainda) ecopista no seu todo. Viseu a Vouzela, 40 quilómetros.
O segundo dia começa labiríntico. Não existe uma ligação propriamente dita entre as ecopistas do Dão e do Vouga, ou sequer indicações de como apanhar o caminho certo para iniciar a segunda.
"Ciclistas que viajam com alforges ou com crianças em atrelados simplesmente não conseguem passar nestas verdadeiras pistas de obstáculos sem espaço suficiente para a manobra."
Este troço da Linha Ferroviária do Vale do Vouga, agora ecopista, passa por seis concelhos: Viseu, São Pedro do Sul, Vouzela, Oliveira de Frades, Sever do Vouga e Águeda. Na saída de Viseu cedo se percebe que o piso não é favorável, há partes do percurso com pedras grandes. É necessário vir à estrada muitas vezes, sem que exista qualquer indicação de como retomar a ecopista. A falta de sinalização é uma constante.
Há ainda excesso de barreiras duplas nas intersecções com as estradas (para impedir a circulação de veículos motorizados). Ciclistas que viajam com alforges ou com crianças em atrelados simplesmente não conseguem passar nestas verdadeiras pistas de obstáculos sem espaço suficiente para a manobra.
Ecopista do Vouga. Barreiras no cruzamento com caminho agrícola. Foto: P. Guerra dos Santos.
Chegar a São Pedro do Sul é um bálsamo e as massagens, a melhor opção, para o percurso a ziguezague.
Já Vouzela, é o ninho perfeito para uma noite descansada, no Bike Inn, um alojamento local cuidadosamente pensado para doidinhos por bicicletas.
3º Dia: Salva pelo Clube de Remo na Foz do Vouga. Vouzela a Aveiro, 85 quilómetros. A pernoita seguinte deveria ser em Albergaria-a-Velha. Chegando à localidade ainda com pouca história do dia na bagagem, avançar para Aveiro era a melhor solução, para apaziguar o sangue na guelra.
Ecopista do Vouga. Praia Fluvial da Quinta do Barco, Paradela.
Um caminho de terra batida ali para os lados da zona industrial de Albergaria-a-Velha, era tudo o que era preciso para repor os bons níveis da espiritualidade. A entrada no percurso pela ria de Aveiro iniciou-se ao final da tarde. Não há bateria que aguente tanta mudança de planos. A assistência elétrica foi-se a 10 quilómetros de Aveiro. Não fosse a simpatia e o gerador das gentes do Clube de Remo de Cacia, a noite teria caído sem que pudesse contemplar os flamingos na sua rotina de mais um fim de dia épico de verão.
Passadiços de Cacia. Ria de Aveiro.
A exposição ao tempo e à verdade
No seu conto "A Bicicleta", Tolentino Mendonça acrescenta que ela "é um curioso signo. Solicita ao utilizador uma participação direta, que os meios de transporte automatizados dispensam, e vem justamente associada à frugalidade (não é dispendiosa, nem impositiva). Além disso, potencia a liberdade; desloca-se em silêncio e numa velocidade que o corpo ainda acompanha; permite vias e estilos alternativos; oferece a quem a usa a possibilidade de estar consigo próprio e, ao mesmo tempo, exposto à verdade do tempo, em vez de enclausurado numa cápsula uniforme".
Rio Vouga. Cacia.
Estar connosco próprios é expormo-nos à verdade e ao tempo. Uma bicicleta é nada mais nada menos que a possibilidade de proximidade com o divino, sejam quais forem as crenças. Ou a inexistência das mesmas. Algumas vezes fui convidada para passeios em grupo. Declinei todos. Uma antipatia em pessoa. Ou talvez não. Cada caminho percorrido, reforça a minha convicção: quero estes momentos só para mim. Porque às vezes apetece-me ficar parada sozinha, simplesmente a contemplar o caminho. Onde eu quero. Onde eu decido ouvir o silêncio da liberdade. *Passeio realizado em meados de Julho de 2023 com uma e-Bike. **Agradecimento à Rede Nacional de Cicloturismo. Sem os tracks da Ecopista do Vouga, a aventura seria muito difícil de concretizar.
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