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A Ecopista do Tua, ou o que falta para ser uma.

Atualizado: 4 de dez. de 2023

De Bragança a Mirandela: o que falta para se poder viajar em bicicleta por esta antiga linha de comboios de via estreita.


Antigo corredor ferroviário da Linha do Tua. Perto de Sortes, concelho de Bragança.


Logo após ter publicado o artigo "A ciclovia de 200 km ... que não existe!" a curiosidade e gosto por esta região levaram-me a palmilhar (informaticamente falando) as imagens de satélite desta antiga linha de caminhos de ferro que se iniciava na Linha do Douro, em Foz Tua, e seguia até Bragança. Desactivada parcialmente em inícios da década de 1990, tem agora os primeiros 16 km totalmente debaixo de água devido à construção de uma barragem e desde 2007 que por ela já não circulam quaisquer comboios da CP em todos os seus 134 km de extensão.


As imagens da Terra vista do céu, na sua maioria de 2022 e algumas já de 2023, mostravam nesta zona do planeta um antigo corredor ferroviário cheio de mato e lama, em alguns troços ainda com o velhinho carril de via estreita e as pontes (de tabuleiro metálico) estavam intransitáveis graças a mais de 30 anos de abandono.

Mas foi precisamente uma destas pontes (a de Rebordãos, no concelho de Bragança) que me chamou a atenção: as imagens de satélite mostravam junto dela equipamentos de obra e parte dela estava entaipada. O coração saltou de alegria pois, se a ponte está a ser alvo de recuperação, significa que o antigo corredor ferroviário deve estar a ser transformado em Ecopista.


Antiga Ponte Ferroviária de Rebordãos, Bragança. Imagens de satélite de 06/Maio/2022.

A resposta a um email enviado para o departamento de turismo da Câmara Municipal de Bragança confirmou isso mesmo: boa parte do corredor que atravessa o concelho já é ciclável, embora não tenha ainda levado a camada de pavimento final (nem sinalética ou infraestruturas de drenagem) e faltem terminar as obras de recuperação de uma das pontes ferroviárias.


Digerida toda esta nova informação, resolvi tirar uns dias para ir pedalar pela região e ver com os meus próprios olhos (e com os pneus da bicicleta) o estado que levam estas obras, mais de 30 anos após o encerramento da linha.


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Em quase todas a minhas viagens de bicicleta desloco-me até ao local de partida utilizando o comboio. Uma vez que isso já não é possível, a viagem teve de ser feita em autocarro da Rede Expressos, apesar de preferir de longe o modo ferroviário.

E a coisa até nem correu mal. Tirando o facto de, para poder colocar a bicicleta no porão do autocarro ter de desmontar a roda da frente e embrulhar todo o conjunto em sacos do lixo (daqueles grandes de 110 Litros) bem atados com fita-cola, de ter pago mais 5€ pelo transporte da bicicleta e de ainda ter de pagar para usar o wc do autocarro, a viagem seguiu serena pela A4, desde o novíssimo Terminal Rodoviário da Campanhã até chegar (imaginem) à antiga Estação de Comboios de Bragança (agora museu e terminal rodoviário). Saliento a simpática conversa com os motoristas (tanto na ida como na volta) que, curiosos, queriam saber detalhes do meu passeio a pedal por terras transmontanas.


Antiga estação de comboios de Bragança, junto ao terminal rodoviário.


Chegado a esta capital de districto, onde pernoitei, como era hora de almoço fui comer uma sopa e um panado. Coisa leve pois ainda queria aproveitar a tarde para ir visitar Gimonde. Esta aldeia é atravessada pelo Rio Sabor (não confundir com a Ecopista que tem o nome deste rio, pois essa fica para os lados de Miranda do Douro) e tem algumas casas tradicionais recuperadas a preceito. Na realidade tinha planeado ir um pouco mais a norte, quase até Rio de Onor, mas esqueci-me que aqui estamos 2º deslocados em termos de longotude relativamente ao litoral do país e que a menos de 15 km daqui o fuso horário até tem mais uma hora: já é Espanha. Resumindo, menos cerca de meia hora de luz ao final do dia em relação ao que tinha previsto. Junta-se-lhe as nuvens negras que pairavam no ar e o passeio de hoje teve de ser mesmo encurtado.



Casa típica transmontana. Gimonde.


Ponte sobre o Rio Onor, que desagua mais à frente no Rio Sabor. Gimonde.


Regressado à cidade, para jantar aconselharam-me o Alma Lusa, bem no centro histórico e próximo do Largo da Sé. Das entradas aos pratos principais, variadas são as opções bem como a originalidade nos sabores. O que mais me surpreendeu: a música de gosto suave com notas portuguesas e espanholas, a decoração alusiva ao Fado, a sobremesa com sabor a castanha e a cerveja artesanal com o nome da casa e da terra: Alma Transmontana. Aconselho.


Pernoitei no Baixa Hotel, que recomendo. Barato, bem localizado e com uma limpeza 5 estrelas. 40€, com pequeno almoço incluído. A bicicleta ficou guardada numa arrecadação junto à recepção.



Ecopista do Tua

"Mas do antigo corredor para comboios praticamente não há sinais, ao ponto de nem sequer chamarem Ecopista às ciclovias que o substituiram"

Mas vamos então às pedaladas pela (futura) Ecopista do Tua, entre Bragança e Macedo de Cavaleiros (ela seguirá também até Mirandela).


Bragança é uma cidade de pequena dimensão. Tem vindo a perder população permanente nas últimas décadas e o seu centro histórico está desertificado. Em contraciclo, as novas urbanizações construídas no limite da cidade, em arquitectura de gosto duvidoso, têm vindo a crescer, curiosamente, ao longo da antiga linha ferroviária, agora reconvertida numa espécie de circular rodoviária urbana, com separador central e 2 vias em cada sentido em alguns troços. Felizmente não se esqueceram da mobilidade ciclável, pelo que estes 6 km do antigo corredor ferroviário que contornam a cidade, para além de vias para o trânsito automóvel, têm também ciclovia. Mas do antigo corredor para comboios praticamente não há sinais, ao ponto de nem sequer chamarem Ecopista às ciclovias que o substituiram.


Circular rodoviária urbana a 1.5 km da estação de comboios, assente sobre o antigo corredor ferroviário. Bragança.


Fiz questão de começar as pedaladas bem na estação de comboios, que corresponde ao antigo e final Km 134 desta linha, mas infelizmente o corredor foi cortado há uns anos por uma estrada, pelo que tive de dar a volta pelo terminal rodoviário. A boa notícia é que estão a construir uma ponte ciclo-pedonal para repor a ligação da estação à (futura) ecopista, agora ciclovia. Retomado o corredor passo pela zona periférica da cidade, onde se avistam urbanizações, parques empresariais e industriais. São 6 kms sem qualquer interesse do ponto de vista histórico ou paisagístico. Mas há uma alternativa que pesquisei: sair do centro histórico utilizando os caminhos e as ciclovias junto ao Rio Fervença, que atravessa a cidade. Passam pela zona da universidade e daí chegamos facilmente à ecopista, poupando quase 4 km de urbanidade sem qualquer interesse turístico. Bem mais bonito, mais curto e muito menos ruído de tráfego automóvel de passagem.


É já junto a uma antiga passagem de nível que entramos verdadeiramente naquela que será a Ecopista do Tua. A placa quilométrica indica "P.N. Qm. 127,710". O quilómetro zero era na estação do Tua, na Linha do Douro (onde agora há cada vez mais comboios, alguns históricos).



Antiga casa do guarda e passagem de nível. Ex-Linha do Tua, Bragança.


Entro com expectativa no corredor, agora em terra. Em alguns pontos nota-se o afloramento do antigo balastro, agora compactado e misturado com terra. Algumas centenas de metros e dou comigo a apanhar castanhas bravias. Um castanheiro nasceu na berma do corredor e são às dezenas os ouriços secos e abertos no chão. Apanho bem mais que um quilo delas que coloco no alforge, seguindo viagem.

Isto lembra-me que deveria ser prática corrente plantar árvores de fruto ao longo deste tipo de infraestruturas. Tanto para os locais como para os viajantes é uma experiência sensorial incrível apanhar fruta da época directamente da árvore ou do chão. Além disso é publicidade gratuita aos produtos agrícolas típicos de cada região. Fica a ideia para os responsáveis técnicos e políticos deste tipo de projectos.


Castanheiro no corredor da futura ecopista.


Segue-se a antiga estação de Mosca. Está acabadinha de recuperar. A má notícia é o que vem logo a seguir: lama !


Percebi ao longo de grande parte do traçado que percorri (cerca de 29 km, de Bragança a Salsas, o possível para já) que os locais habituaram-se a utilizar o corredor para aceder às suas quintas, terrenos e pomares. A desvantagem é que os rodados dos tratores e das carrinhas de caixa aberta deixam o pavimento num estado lastimoso, na época da chuva. E relembro que estamos numa das zonas com maior índice de pluviosidade anual de Portugal Continental.


Estação de Mosca, ex-Linha do Tua. Concelho de Bragança.

Com alguma perícia consegui passar com a bicicleta à mão, sem sujar o calçado. Ainda assim as rodas encheram-se de lama.

Mas logo a seguir veio a bonança. Para além de um estradão em bom estado, mostra-se aos meus olhos uma belíssima paisagem, bem representativa do Outono em Trás-os-Montes.

Mosca, ex-Linha do Tua. Concelho de Bragança.


Continuo por entre olivais e carvalhais até chegar à primeira ponte ferroviária. Sensivelmente ao PK 123 km está a Ponte de Rebordãos, a tal que nas imagens de satélite estava em obras. Está agora prontinha !



Ponte ferroviária desactivada de Rebordãos. Ex-Linha do Tua, concelho de Bragança.


De louvar o investimento na recuperação desta infraestrutura que irá servir para mobilidade suave das populações locais, bem como para usufruto de visitantes e viajantes. Um senão: não compreendo aquele gradeamento para guarda-corpos com 1.5 metros de altura. Para além de nunca ter visto algo assim, tão alto, tapa a visibilidade até de um adulto impedindo-o de contemplar a belíssima paisagem ribeirinha para ambos os lados. Acresce aquela cor vermelha garrida, totalmente fora de contexto com um forte e negativo impacte visual. Espero que melhorem este aspecto e que não cometam o mesmo erro na ponte que falta recuperar.


Sigo feliz da vida, com um ou outro ponto de água e lama, consequência de o corredor não ter ainda levado a camada final de pavimento nem sequer ter infraestruturas de drenagem de águas pluviais. As paisagens, essas, são fundamentalmente extensos carvalhais que cobrem serras inteiras, o que nesta altura do ano gera cores quentes, desde o amarelo torrado ao castanho escuro, passando pelos avermelhados, consequência das folhas secas.


Chego à segunda ponte, a de Remisquedo. Está em fase avançada de restauro, tendo lavado um pavimento de betão leve, o que me parece uma excelente e confortável opção. Espero que não a estraguem com aquele guarda-corpos, vermelho garrido, de 1.5m de altura.


Ponte ferroviária desactivada de Remisquedo, em obras. Ex-Linha do Tua, concelho de Bragança.


Vista da ponte sobre a Ribeira de Remisquedo. Concelho de Bragança.



Vida selvagem

"O segundo túnel, já perto de Rossas (...) é a residência oficial de centenas de morcegos"

Sigo de alma cheia com energia e esperança. Um pouco mais à frente apanho o primeiro túnel, o Túnel Ferroviário de Remisquedo. É curto, cerca de 150 metros. O piso está tal-e-qual o deixaram depois de tirar os carris: um betão pobre em gravilha grossa tipo calhau rolado, felizmente com valetas de drenagem em ambos os lados. Passa-se bem com a bike à mão por entre os pingos de água que caem do tecto, construído em estrutura de alvenaria.


Mas o mais curioso está para chegar: o segundo túnel, já perto de Rossas, para além de ser em curva e ter cerca de 220 metros de extensão (o que o torna escuro como o bréu ao centro) é a residência oficial de centenas de morcegos. Isso mesmo! Aquele animalzinho que controla as pragas de insectos, devorando-os quando sai à noite. A sua importância é tal que a Câmara Municipal de Bragança construiu-lhes um ninho por forma a preservar este seu refúgio. Espero que a câmara encontre formas de manter este habitat e de convencer os ciclistas a fazer pouco barulho à sua passagem. Para quem tenha medo deste mamífero voador, há um caminho alternativo que contorna a serra, de uma ponta à outra do túnel, praticamente de nível.


Ninho de morcegos no Túnel Ferroviário de Arufe, próximo de Santa Comba de Rossas.


E eis que chega o ponto alto da viagem. Literalmente.

Durante quase um século, a estação de Santa Comba de Rossas foi o ponto mais alto de toda a ferrovia portuguesa. Esta estação localiza-se a cerca de 850 metros acima do nível médio das águas do mar, ligeramente acima dos 820 metros da estação da Guarda, que detém agora o actual recorde de altitude.


Estação Ferroviária desactivada. Santa Comba de Rossas.


A partir daqui o corredor ferroviário começa a apresentar alguns sinais de abandono, apesar de estar limpo de carris, travessas e balastro. Passou até por mim um carro, ainda que devagar. São assim mais 5 km com alguma brita e lama até chegar perto da aldeia de Salsas onde acaba (para já) a parte ciclável do corredor. Foram quase 29 km a pedalar (faltam 20 até Macedo de Cavaleiros, dos quais 7 ainda no concelho de Bragança) por cima da nossa história ferroviária.


Linha do Tua à entrada de Salsas. Concelho de Bragança.


A partir de Salsas é possível pedalar em vias com reduzido tráfego automóvel, mas que obrigam a algum ganho de altitude. Nada de exagerado, cerca de 250 metros de acumulado até Macedo de Cavaleiros, e sempre em asfalto. Neste concelho o corredor ainda tem o carril em grande parte do traçado, tendo sido convertidos em ecopista apenas 5 km, metade para cada lado da estação de comboios, também ela recentemente alvo de uma belíssima recuperação.


Ecopista do Tua, antiga estação de comboios de Macedo de Cavaleiros.


Tudo isto significa que ainda não há ligação da ecopista entre concelhos. Mas ao que consegui apurar, há diversas partes do corredor em obras, nos 3 concelhos: Bragança, Macedo de Cavaleiros e Mirandela. Estimo que até 2025 se possa pedalar oficialmente em ecopista nestes cerca de 70 km da antiga Linha do Tua entre Bragança e Mirandela.


Para 2024 será englobada na Rede Nacional de Cicloturismo a secção 4.02, de Bragança a Macedo de Cavaleiros, num misto em ecopista e vias de reduzido tráfego.



Pequenos apontamentos:


1) Os municípios colocam diversos obstáculos à circulação de bicicletas nas zonas de cruzamento com estradas. Na foto de baixo um deles, na Ecopista do Tua, em Macedo de Cavaleiros.



Existem em praticamente todas as ecopistas do país, incluíndo no novíssimo troço da Ecopista do Vouga entre Viseu e São Pedro do Sul, onde são às dezenas.


Percebe-se que estes obstáculos têm como principal objectivo evitar acidentes entre ciclistas e automóveis fazendo com que os primeiros sejam obrigados a reduzir a velocidade, mas acreditem caros colegas de projecto de vias de comunicação, existem muitas outras soluções que não criam dificuldades e até acidentes aos ciclistas, uma vez que são obstáculos físicos em plena via. E não exagerem, já que vejo diversos obstáculos destes até em zonas de cruzamento para acesso a um único terreno/propriedade. Deixo a sugestão às câmaras municipais para que usem com parcimónia este tipo de soluções perigosas para ciclistas (já vi várias quedas por embate) até porque eu não consigo ali passar se levar o atrelado onde costumo transportar o meu filhote de 3 anos, o que invalida logo à partida escolher fazer um passeio de fim-de-semana em família por estes lados.


2) Apanhei este painel em Macedo de Cavaleiros. Tem um título estranho: Rede Ciclável das Terras de Trás-os-Montes.




Eu lado algum vejo a palavra "Ecopista", designação oficial e patenteada para designar antigas linhas ferroviárias reconvertidas para mobilidade suave. É FUNDAMENTAL que as regiões não se isolem daquilo que é o Plano Nacional de Ecopistas, devendo sempre promever-se em rede, o que lhes trás maior visibilidade e, claro, mais visitantes.


Também não percebo o conceito de chamar "ramal" a caminhos rurais e florestais, nem sequer porque estão englobados num projecto designado "rede ciclável".


Termino desta forma com algum humor: se é para chamar ciclável a tudo e mais alguma coisa (incluindo caminhos rurais e florestais), acho que estes municípios estão a ser pouco ambiciosos e poderiam chamar ao mapa de estradas dos seus territórios de "ciclável", já que as bicicletas também podem circular nestas vias, incluindo as estradas nacionais. Teriam assim a maior rede ciclável do país, não tenho a menor dúvida.


Boas pedaladas, seja qual for o tipo de via onde gostam de o fazer !


Texto: P. Guerra dos Santos

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