Ou: como vender gato por lebre na promoção do território.
Caminho rural.
Antes de mais, uma declaração de interesses: há quase 30 anos que trabalho na área de projecto de vias de comunicação rodoviárias (um dos ramos de especialização da Engenharia Civil). Desde a adolescência que pratico ciclismo de estrada e BTT. Há 15 anos atrás, para além do automóvel particular e dos transportes públicos, comecei também a utilizar a bicicleta como meio de deslocação diária. Termino dizendo que desde 2010 faço viagens em modo turismo, com regularidade e por todo o país, em bicicleta.
Feita a apresentação tenho de confessar que, com toda esta experiência e formação técnica em engenharia de projecto de estradas, nem nos meus sonhos mais fantasiosos pensei alguma vez poder ver um projecto de estradas em Portugal que envolvesse tal extensão de via para ciclistas: 200 km!. Nem lá perto.
Talvez por isso, o meu coração quase saltou pela boca aquando da primeira vez que vi tão aclamado título em diversos órgãos de comunicação social - alguns de grande alcance como o Expresso, a Evasões, o Observador e até o Portal Sapo - sobre a inauguração de uma suposta ciclovia com 200 km entre Mirandela e Macedo de Cavaleiros. Que, para quem não as conhece, são 2 cidades no coração de Trás-os-Montes dignas de visita demorada.
Em baixo, capturas de ecrã das publicações acima referidas.
Depois de ver tal título em ecrã pequeno, assim que tive a oportunidade liguei o computador e fui pesquisar mais a fundo tudo o que encontrava sobre aquela que, aparentemente, seria a ciclovia mais longa do país, o que estava a conseguir criar em mim uma sensação semelhante à que antecipa um grande clímax, tenho de admitir.
Infelizmente não foi preciso muito para o fatídico balde de água fria: afinal a tal infraestrutura não tem 200 quilómetros, nem muito menos é uma ciclovia!
Vamos lá por partes então.
Em linha recta, ou na realidade em curva vertical pois a Terra é redonda (espero não estar a ofender alguém com esta afirmação), do centro de Mirandela ao centro de Macedo de Cavaleiros não chega sequer a 20 km.
Claro que, como estamos numa das zonas de maior irregularidade do país em termos orográficos, entre ziguezagues pelos vales e sobe-e-desce pelas serras, a coisa não se faz por menos de 26.5 km (maioritariamente pela EN15, de centro a centro) pelo que isto suscitou-me a questão: terão eles feito uma ciclovia às voltas, para a frente e para trás, para chegarem à tal marca recorde? É que 200 km dava para ir de Mirandela a Chaves, subir a Verín na Galiza, voltar a Portugal por Vinhais, visitar Bragança e ainda fazer um desvio até Vimioso antes de virar agulhas para Macedo de Cavaleiros.
(Aqui começo a desconfiar …)
Acresce o facto de, em todos os artigos publicados, para além dos textos serem do tipo copiar/colar, apenas via fotografias de caminhos rurais e florestais em terra (alguns bem esgravatados) a serem percorridos em bicicleta de BTT.
(Pronto! Foi aqui que a coisa começou a murchar)
Ainda assim, logo após recuperar algum fôlego, dou-lhes o benefício da dúvida e faço uma reflexão profunda: terão os meus professores de engenharia andado a enganar-me todos aqueles anos de curso ou - possibilidade também - poderá o código da estrada estar desactualizado e uma ciclovia não ser afinal uma infraestrutura com determinadas características tanto geométricas (em planta e perfil) como de pavimento, nem muito menos ter uma ligeira e singela peculiaridade (um bocado chata, eu sei): o facto de ser EXCLUSIVA a ciclistas !
Mas não, uma vez que por via das dúvidas dei comigo a reler o mais recente código da estrada e ... voilá:
Artigo 78.º - Pistas especiais
3 - Nas pistas destinadas a velocípedes, é proibido o trânsito daqueles que tiverem mais de duas rodas não dispostas em linha ou que atrelem reboque, exceto se o conjunto não exceder a largura de 1 m.
Mais ainda: porque senti que poderia não estar na posse de todas as minhas faculdades mentais, fui à internet pesquisar imagens sobre ciclovias. E pumba! Em baixo, exemplo de uma, para quem nunca as tinha vislumbrado.
Foto de Lisboa Bike: Ciclovias de Lisboa
E por fim, uma foto de um dos caminhos agora georreferenciados em GPS nos concelhos de Mirandela e Macedo de Cavaleiros.
Foto de Quadrassal (cyclinportugal.pt)
Resumindo, é do conhecimento público que caminhos agrícolas e florestais são vias públicas para serem utilizadas por todo o tipo de veículos, desde automóveis a veículos agrícolas e de emergência, que podem até em alguns casos ter inclinações tão elevadas que a chuva acaba por os deixar num estado lastimoso, o que os torna extremamente difíceis de percorrer em bicicleta. Só mesmo com veículos 4x4 ou em modo BTT !
Por isso eles podem ser chamados de caminhos de pé posto, estradões, serventias, acessos florestais, etc., mas nunca de ciclovias!
Infraestruturas viárias
"... as ciclovias não devem ser assuntos tratados pelos pelouros de desporto das câmaras municipais ..."
Já as ciclovias são infraestruturas viárias que permitem deslocações de bicicleta em maior segurança e conforto, muitas vezes segregadas do restante tráfego automóvel, mais inclusivas e acessíveis a todas as idades, excelentes para viagens de longa distância com os alforges bem carregados ou pequenos passeios de lazer e - objectivo maior da mobilidade sustentável - deslocações diárias casa-trabalho-casa.
Por isso mesmo - e fica aqui um aparte - as ciclovias não devem ser assuntos tratados pelos pelouros de desporto das câmaras municipais, como muitas vezes o são, mas pelos departamentos responsáveis pelas infraestruturas viárias, urbanismo ou mobilidade (o que estiver mais à mão, já que as câmaras nem sempre têm especialistas nestas matérias).
Bom, para não fazer o caro leitor perder muito mais tempo, o que foi inaugurado é na realidade um Centro de BTT, homologado pela Federação Portuguesa de Ciclismo, daqueles que dão garantias de (muito boas) condições para a prática de Bicicleta Todo-o-Terreno. Vulgo BTT (lá está!).
Estes centros possuem infraestruturas de apoio aos betetistas tais como duche e casas de banho, mangueira para lavagem de bicicletas, ferramentas para pequenas reparações e claro, os tracks GPS para se guiarem pelos caminhos (os tais que não são ciclovias). Já percorri diversos nos últimos 30 anos e é bem agradável vê-los a serem georreferenciados e promovidos (como percursos BTT) um pouco por todo o país.
Mas há mais, pois neste caso em particular há que acrescentar ainda que não são 200 km, mas substancialmente menos.
O que estes percursos agora identificados e georreferenciado em GPS fazem é permitir andar às voltas em diferentes rotas - com diferentes distâncias, níveis de dificuldade e acumulados de altitude - que bastas vezes se sobrepõem acabando por duplicar (e até triplicar) a distância total possível de percorrer entre estes dois concelhos. Que, diga-se em abono, se juntaram para a concretização de um projecto intermunicipal, o que é coisa de valorizar e muito!
Quase a terminar, pois tenho mais do que fazer e não me pagam para isto, deixo-vos aqui 3 sugestões:
- Visitem Mirandela. Para além de poderem comer uma boa alheira, aquele espelho de água alimentado pelas águas do Tua é atravessado por uma belíssima ponte ao estilo romano. Gracioso!
- Visitem Macedo de Cavaleiros. É imperdível uma visita à Casa dos Caretos de Podence bem como dar um mergulho numa das praias fluviais com a água mais tépida que conheço em Portugal Continental: a Praia Fluvial da Albufeira da Barragem do Rio Azibo. Ainda para mais tem a classificação de Paisagem Protegida. Top!
- Caso sejam praticantes dêem umas pedaladas (em modo BTT, claro!) por alguns dos caminhos (de cabras, de pé posto, agrícolas, florestais, etc.) agora identificados neste novo Centro de BTT. É uma região ainda com elementos paisagísticos tradicionais como olival e montado de sobro e (quase) não se vêem eucaliptais de monocultura intensiva e extensiva. Vale a pena!
Para terminar mesmo, deixo esta mensagem aos agentes técnicos e políticos das câmaras municipais de Mirandela e Macedo de Cavaleiros: para além de gastarem recursos a promover o que de bom realmente têm, apostem na reconversão da antiga Linha Ferroviária do Tua, transformando-a em Ecopista.
Tendo em conta que a C.M. de Bragança está muito perto de o fazer em praticamente toda a extensão desta antiga linha de comboios na parte que atravessa o seu concelho, os 3 municípios juntos teriam uma infraestrutura (esta sim, exclusivamente ciclável e pedonal) com mais de 70 km de extensão, colocando-os assim mais perto de serem englobados em rede no que toca ao (crescente) sector do turismo em bicicleta.
Já estou até a imaginar o título sensacionalista: “Mirandela, Macedo de Cavaleiros e Bragança ganham a mais longa ecopista de Portugal”. Isto é que era uma notícia, caramba!
E, ao que sei, esse projecto existe. Apenas avança a diferentes ritmos pelos diferentes territórios.
Exemplo de Ecopista: Ecopista do Vouga, próximo de Vouzela.
Nota final: Peço-vos que parem de me fazer perguntas sobre a tal ciclovia de 200 km (não existe!) e, se possível, mandem a hiperligação deste artigo àqueles vossos amigos mais incautos que apenas lêem as “gordas” das notícias, para não se arriscarem depois a ver goradas as suas expectativas.
Boas pedaladas, seja qual for o vosso modo favorito de o fazer !
Texto: P. Guerra dos Santos
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